quinta-feira, 5 de junho de 2014

Kuala Lumpur — Danusha, nas Petronas


Quis ir à Malásia por causa de Malaca. Meti na cabeça que queria conhecer o bairro português ou "Portuguese Settlement", como lhe chamam por lá. Infelizmente a visita ao bairro foi uma tremenda desilusão. Há duas ou três ruas com nomes portugueses, casas de arquitectura descaracterizada, uma praça com um par de restaurantes onde se confeccionam pratos de inspiração vagamente lusa e um museu liliputiano repleto de tralha que não interessa nem ao Menino Jesus. Verde, vermelho e motivos do folclore português pintados nas paredes. E eu que implico solenemente com esta imagem de Portugal parada no tempo, como se nos reduzíssemos a bacalhau e corridinhos. Ou viras. Trocámos algumas palavras com um senhor que nos levou ao museu. Discursou longamente sobre as diferenças entre o português que lá falam e o português de Portugal, mas fê-lo sempre em inglês. E ainda se queixou que as novas gerações não querem aprender o idioma dos tetravós. Pudera! Que interesse tem aprender o idioma de um país que, retratado desta forma, parece cheirar a mofo? Da nossa língua só ouvimos mesmo as palavras ditas por um pescador, que remendava redes sentado no chão. As vogais muito abertas, num sotaque vagamente tropical. E mais nada. Malaca, Património Mundial da Humanidade desde 2008, é engraçada e merece ser visitada. Dá prazer passear pelas ruas de travo europeu cheias de turistas e fazer o roteiro das lojinhas, que são muitas e de muito bom gosto. Mas o que salvou mesmo a ida à Malásia foi a sua capital, Kuala Lumpur, a cidade que parece encerrar vários países. Fiquei alojada no bairro chinês, contudo, ao virar da esquina, parecia chegar à Índia quando surgia um templo hindu de cores psicadélicas.  E cinco vezes por dia viajava até ao norte de África sempre que ouvia o muezim chamar os fiéis para as orações. Porém, os encantos de Kuala Lumpur não se reduzem a esta mistura surpreendente de culturas que parecem conviver em paz. Kuala Lumpur é, a par das tradições e rituais ancestrais, uma cidade moderníssima, que esbanja juventude, dinamismo e luxo, uma faceta que tem como expoente máximo as badaladíssimas torres Petronas, outrora as mais altas do mundo. Foi junto à entrada da Torre 2, mesmo antes de entrar no shopping que lhe está adjacente para ir almoçar, que conheci a Danusha, uma jovem malaia cujo trabalho de auditoria lhe consome muito tempo. "Trabalho aqui nas Petronas. Já li mais do que leio atualmente. Mas aproveito todo o tempo livre para fazê-lo. Leio sobretudo romances, mas também gosto de não ficção. Salman Rushdie é talvez o meu autor favorito, embora só tenha lido três romances dele", disse-me. O livro que tinha consigo naquele dia era "The Finkler Question" ("A Questão Finkler", na sua edição portuguesa), romance que valeu a Howard Jacobson o Booker Prize de 2010. "Foi-me oferecido por um amigo" contou-me. E enquanto me mostrava a extensa dedicatória escrita nas primeiras páginas, esse amigo chegou e  aproximou-se de nós. "Bem, na verdade ela queria o livro", disse ele rindo-se. Trocaram um olhar cúmplice e a Danusha completou: "Não costumo ler as sinopses. Leio apenas as críticas. E pelas críticas feitas a este romance achei que devia ser giro. E é mesmo muito divertido. Estou a gostar muito!" Olha de novo para o amigo e acrescenta "Quem também é escritor é ele. Está a escrever um livro que um dia será publicado". Ele não desmente. Explica que ainda não sabe o que é "aquilo". "Só palavras, por enquanto. Mas ela é que devia ser escritora", diz olhando para a Danusha. "Escreves muito bem". E deixei-os a discutir esse assunto não sem antes combinarmos que quem publicasse primeiro um livro teria de me dar conhecimento.

Mais fotos da Danusha e das torres Petronas aqui.

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I wanted to go to Malaysia because of Malaca. I was determined to visit the Portuguese neighbourhood or Portuguese Settlement, as it is called there. Unfortunately the visit was very disappointing. There are two or three streets with Portuguese names, houses with uncharacteristic architecture, a square with a couple of restaurants where dishes with remote Portuguese roots are served and a Lilliputian museum filled with junk with no interest at all. Green, red — the colours of the Portuguese flag — and motifs of Portuguese folklore are painted on the walls. A torment for me who disagrees with this image of a Portugal frozen in time, as if we were nothing else but codfish and corridinhos. Or viras.* We talked for a while with a gentleman who took us to the museum. He made a long speech about the differences between the Portuguese they speak and the Portuguese spoken in Portugal, but he did it in English. And yet he complained that the new generations don’t want to learn the language of their great-grandparents. No wonder! What interest could there be in learning the language of a country that, with such a portrait, seems to be old fashioned? We just heard a few Portuguese words from a fisherman who was sewing nets, sitting on the floor. Very open vowels, in a slightly tropical accent. Nothing else. Malaca, a World Heritage site since 2008, is funny and deserves to be visited. It is pleasant to stroll in its streets with a slight European ambience, filled with tourists, and enter the small shops, which are many and of good taste. But what really saved the trip to Malaysia was it’s capital, Kuala Lumpur, the city that seems to enclose several countries. I was housed at the Chinese neighbourhood, but, when I turned the corner, it seemed like I was arriving in India when Hindu temple of psychedelic colours appeared. And five times a day I travelled to North Africa every time I heard the muezzin calling the Muslim congregation to pray. But, the charms of Kuala Lumpur aren’t reduced to this surprising mix of cultures that apparently live together peacefully. Kuala Lumpur is, along with its traditions and ancient rituals, a very modern city, that exudes youth, dynamism and luxury, a side that has its pinnacle on the well-known Petrona Towers, once the highest of the world. It was near the entrance of tower 2, right before entering the shopping next to have lunch, that I met Danusha, a young Malaysian woman whose auditing job is very time consuming. “I work here at the Petronas. I have read more than I do now, yet I use all of my free time to do it. I read mostly novels, but I also like non-fiction. Salman Rushdie is maybe my favourite author, although I only read three of his novels”, she told me. The book she had with her that day was "The Finkler Question", the Howard Jacobson novel awarded with the 2010 Booker Prize. “A friend offered it to me” she said. And while she was showing me the extensive dedicatory written on the first pages, that friend arrived and came closer to us. “Well, actually she wanted the book”, he explained, laughing. They exchanged an accomplice look and Danusha completed: “I don’t usually read the synopsis. I only read the reviews. And by the reviews of this novel I thought it should be fun. And it is full of fun. I’m enjoying it very much!”  Again she looks at her friend and adds “He is also a writer. He is writing a book that one day will be published”. He does not deny it. He explains he doesn’t know yet what “it” is. “Only words so far. But she should be a writer to”, he says looking to Danusha. “You write very well”. I left them arguing this matter but before we agreed that whoever publishes the book first would let me know. 

You can find more pictures of Danusha and the Petrona Towers here.
Translated by Marisa Silva

*Corridinhos and Viras are traditional Portuguese dances.

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