Depois de ter deixado o Brasil nos últimos dias de março, passei vários meses a desbravar territórios que me eram absolutamente desconhecidos — Sidney, Dili, Kuala Lumpur, Malaca, Banguecoque, Shiang Mai, Luang Prabang, Vientiane, Angkor, Phnom Pehn, Saigão, Hanoi, SaPa, HaLong. Lugares tão distantes e tão exóticos, que achei fora do meu alcance, mas que pude por fim visitar com assombro. Aí, onde tenho poucas ou nenhumas referências, onde me vejo na estaca (quase) zero, sinto essa torrente de energia que brota das primeiras vezes. Viciei-me no confronto com o novo, com o estranho e em tudo o que isso exige de mim. Viciei-me na descarga de adrenalina provocada pela viagem, no desafio. Estou sempre pronta a partir.
Porém, não posso negar que em meados de junho, quando voltei a pisar Hong Kong, o conforto do já conhecido me soube muito bem. Durante uns dias não tive de me preocupar com a orientação, arranjar pontos de referência, perceber como funcionam os transportes ou visitar monumentos ditos obrigatório. Em Hong Kong pude apenas vogar sem destino e usufruir das coisas mais simples que esta cidade vibrante tem para oferecer: a vista sobre os arranha-céus a partir do calçadão de Kowloon — uma das paisagens urbanas mais incríveis que já vi, estando parte do seu encanto na forma como muda com a passagem das horas — os jardins, o comércio, a comida, o choque entre as tradições centenárias e o ultra-moderno, o frenesi constante dos mais de sete milhões de habitantes.
Num desses dias permiti-me ceder às saudades de duas coisas: comer um bom sushi e passar algum tempo sentada à mesa de um café para atualizar o diário da viagem. Matar o primeiro desejo não foi difícil, uma vez que não faltam restaurantes japoneses em Hong Kong. Já encontrar um café de rua que não pertencesse a uma qualquer cadeia ocidental foi tarefa impossível. Contrariada, dirigi-me ao Starbucks com vista para a baía e sentei-me numa mesa de dois lugares junto à grande janela. Foi então que constatei com surpresa, enquanto mexia o café expresso e trincava o brownie, que afinal aquele lugar comum até me sabia bem. Por uns momentos, o ambiente padronizado permitiu-me aquietar os sentidos e concentrar-me apenas na tarefa de escrever. Refleti pela milésima vez sobre as vantagens e desvantagens do mundo globalizado antes de abrir o caderno e pegar na caneta. Não me desviei da minha tarefa até a Fion se sentar na mesa em frente, de livro em punho.
Nascida e criada em Hong Kong, Fion é professora primária e estava a preparar-se para começar a ensinar chinês. "Uns amigos que também são professores recomendaram que lesse este livro para me inteirar do que andam os miúdos a ler", contou-me. "Fui buscá-lo à biblioteca da escola. É de um autor também natural de Hong Kong e pertence a uma série que tem como herói um agente especial. Neste livro, o protagonista parte numa missão anti-terrorista no médio oriente." Disse-me a Fion que, na sua qualidade de professora, tenta ler o mais possível. Gosta particularmente de literatura infantil, que diz ser mais direta, fácil de entender e próxima do dia a dia. Mas não põe de parte os livros para os mais crescidos e aponta sem hesitações um autor de que gosta muito (e cujo nome entendi a muito custo): Paulo Coelho. Passei os minutos seguintes a ensiná-la a pronunciar corretamente o nome do autor, elucidando-a sobre a sua nacionalidade e a língua em que se expressa: o belíssimo português.
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