A ilha de São Vicente e a sua capital, o
Mindelo, entraram na minha vida em outubro de 1998, quando os meus pais
regressaram de uma viagem a Cabo Verde. Desde então, ouvi relatar inúmeras vezes,
e sempre com muita doçura, detalhes dos três ou quatro dias lá passados: a
movimentada Casa do Benfica, a alegre Praça Amílcar Cabral percorrida por
miúdos fardados à saída da escola, o colorido do mercado municipal, as casas de
traça portuguesa, os espaços com música ao vivo, a simpatia do taxista que fez
as vezes de guia turístico por um dia, o mar turquesa e quente da Baía das
Gatas, a imponência e negritude dos vulcões extintos, a loja onde lhes
recomendaram o CD do Bau que viria, já em Portugal, a embalar muitas das nossa
refeições em família. Foi preciso que passassem dezasseis anos para que eu
tivesse, por fim, a oportunidade de conhecer também a chamada capital cultural
de Cabo Verde. Em 2014, o Mindelo foi a última das mais de trinta cidades que
visitei no decorrer dos 168 dias que demorei a dar a volta ao globo. Daqui
regressei apenas à cidade da Praia para apanhar o voo da TACV que me levou de volta
a casa.
O Mindelo — outrora Porto Grande — existe, em
parte, graças à persistência dos governantes portugueses, que sempre viram
grande potencial na baía natural que a cratera submarina de um vulcão ali
formou. Contudo, a falta de recursos e os longos períodos de seca, adiaram
durante séculos o seu povoamento: a ilha de S. Vicente foi descoberta em 1462,
mas só em 1765 chegaram os primeiros colonos à povoação do Porto Grande. Na
primeira metade do século XIX, mais ou menos na mesma altura em que o Marquês
de Sá da Bandeira decreta que o nome do lugar mude para Mindelo (em
homenagem ao desembarque das tropas liberais de D. Pedro IV no norte de Portugal,
perto do Mindelo, em 1832), várias companhias inglesas de carvão instalam-se na
vila para abastecimento dos navios que viajavam da Europa para o Atlântico Sul.
Já na segunda metade do século XIX, outras companhias inglesas começam a instalar
na ilha cabos submarinos de telégrafo que permitem ligar Cabo Verde ao
continente africano, à Europa, ao Brasil e até aos Estados Unidos. Este período
de prosperidade sob o ciclo do carvão e das telecomunicações, permitiu ao
Mindelo crescer e investir nas infraestruturas públicas. A vila tornou-se,
então, um polo de atração para habitantes de outras ilhas do arquipélago, ao
mesmo tempo que se instalava também uma considerável comunidade estrangeira. O
Mindelo adquiria assim uma aura cosmopolita e requintada muito própria, onde a
cultura crioula — de matriz africana e portuguesa — bebia também da cultura inglesa. Porém, quando no alvor do século XX o carvão começa a ser
substituído pelo petróleo como combustível, o Mindelo entrou num período de
decadência que a Grande Depressão de 1929, entre outros factores, acentuou ainda mais: o desemprego
assolou a maioria dos trabalhadores portuários e do carvão, a pobreza deu lugar
à fome e às doenças e as duas secas extremas da década de 40 provocaram
milhares de mortos e obrigaram à emigração massiva dos mindelenses. Só no fim
da década de 60, com o incremento das remessas enviadas pelos emigrantes e,
mais tarde, com o processo de independência é que o longo período depressivo
entrou em remissão.
Hoje, com cerca de 70 mil habitantes, o
Mindelo é a segunda maior cidade de Cabo Verde. Daquela pequena vila que
começou a crescer a partir da Pracinha da Igreja resta muito pouco. Há um reduzido mas bem conservado casco histórico, mais ou
menos delimitado entre a Praça D. Luís, o Palácio do Governador (agora Palácio
do Povo) e a Praça Nova (rebatizada de Amílcar Cabral) onde as influências portuguesas são mais do que evidentes e a arquitectura e urbanística do período
áureo do século XIX se misturam com a traça do Estado Novo. A partir daí a
cidade espraiou-se desordenadamente pelas colinas que contornam a baía,
formando o que se parece com um presépio feito de prédios feios e casas
inacabadas, outras deixadas no reboco, algumas pintadas de cores berrantes
(disseram-me que conforme a tinta que houver no mercado ou a que for mais
barata na altura). Há algo de favela carioca nestes bairros mindelenses de
olhos postos no mar e na vizinha ilha de Sto. Antão. Mas há também neste
conjunto caótico de ruas — parcas em passeios, pavimentadas de paralelos
desordenados e salientes, muito limpas e salpicadas por escassas palmeiras, acácias,
buganvílias e loendros que resistem estoicamente à falta de água — um travo
encantador que vem do langor do povo, do exotismo do crioulo, da alegria da
música, do calor da dança, da suculência dos pratos salpicados de malagueta, do
ardor do grogue, da cor fascinante do mar, do clima ameno e constante, do
reboliço do vento. No Mindelo os dias parecem ter mais horas, e talvez por isso
tudo se faça devagar. E foi devagar, chinelando, saboreando a sua tão badalada morabeza, que me embrenhei na cidade e
nos seus arredores, longe de imaginar que voltaria muito em breve.
Na manhã que destinei à ida à Baía das Gatas,
saí da Casa Café Mindelo, onde estava alojada, bem no centro da cidade, e
percorri a rua de S. João em direção à Praça Estrela, lugar de onde saem aquilo
a que os locais chamam os “carros de aluguer”, isto é, os pequenos autocarros
que servem de transporte público. Nessa rua, sentado à soleira da porta
estreita de um estabelecimento comercial, avistei o último leitor da volta ao
mundo. Depois de feita a fotografia, convidou-me para entrar na pequena Papelaria S.
João, de que é proprietário, e foi aí que conversámos.
Nascido e criado no Mindelo, o Amílcar foi
para Portugal antes do 25 de Abril para estudar Economia no Instituto Superior
de Economia. Essa experiência na “Metrópole” foi determinante para que se
envolvesse seriamente no movimento de libertação de Cabo Verde. “Fui combatente
pela Liberdade da Pátria”, disse-me, com manifesto orgulho. Sobre si, pouco
mais me contou (embora eu tenha vindo a saber, muitos meses mais tarde, que este leitor, mais conhecido no Mindelo por Sr. Picau, já foi Secretário de Estado). Acrescentou, apenas, que também é autor: publicou um livro
intitulado “As Aventuras de Tibúrcio” (premiado pela Sonangol) e escreve de vez
em quando para jornais cabo-verdianos. Já sobre o livro que estava a terminar
de ler, “A Jangada de Pedra”, e sobre o seu autor, José Saramago, Amílcar não
poupou palavras e expressou-se com entusiasmo. “Adoro Saramago!”, afirmou,
categórico. “Para mim é um dos melhores escritores portugueses da atualidade.
Pela singularidade da escrita, pelo conhecimento da realidade profunda de
Portugal, pelo retratar das coisas sem ornamentos, pelo realismo, o seu
posicionamento, a sua irreverência em relação ao status quo. Em relação a este título em particular, fiquei
entusiasmado com o retrato que faz da perseguição política, da miséria, das
doenças... Passei a adorar Saramago a partir do momento em que entendi a sua
técnica de escrita. Entendendo essa técnica, a escrita de Saramago é muito mais
simples do que se pensa à primeira. Um
conselho que dou aos leitores de Saramago é que o leiam em voz alta. Foi dessa
forma que entendi a sua técnica”. Antes d’ “A Jangada de Pedra”, Amílcar tinha
lido “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e para ler pela primeira vez ou reler
tinha à espera o “Memorial do Convento”, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “A Bagagem do Viajante” e “Caim”.
Não posso deixar de me comover com o facto do
último leitor da minha grande viagem estar a ler um autor português, e logo o nosso único
Prémio Nobel da Literatura. Nada faria mais sentido! Nada se adequaria melhor ao fecho de um ciclo que marcou profundamente o meu percurso e o deste blogue. Até
hoje, passado quase um ano sobre o fim da volta ao mundo, todas as palavras não
me chegam para expressar o quanto fui feliz durante aqueles 168 dias. Espero
que tenham gostado de viajar comigo e que os quase 70 leitores fotografados em 14 países vos tenham
inspirado a ler ainda mais.
4 comentários:
Já sigo o blogue há algum tempo, mas nunca comentei. No entanto, não podia deixar de elogiar este verdadeiro périplo pelos leitores do Mundo. Gostei muito de ler sobre toda a viagem, e em especial estes últimos capítulos, que me parece atingiram uma qualidade verdadeiramente literária. Aliás, se calhar toda esta viagem daria um bom livro...
Desejo as maiores felicidades para a continuação do blogue, e para as futuras viagens e leituras.
Francisco Taveira
Venho sempre ler o blogue e muitas vezes fico cheia de pena de não haver nada novo. Hoje fico cheia de pena porque acaba... (Percebi bem?) Também me emociona a circunstância de acabar com um leitor de Saramago.
Eu também também o aprecio muito!
Obrigada pelos momentos encantadores que proporcionou aos seus leitores!
Mariana Ramos
Olá Mariana! O Acordo Fotográfico não acaba aqui. :) O que acaba é um longo período em que me dediquei aos leitores (e lugares) da volta ao mundo em 2014. Espero, esteja onde estiver, continuar a encontrar leitores que me inspirem a continuar a escrever. E neste processo, é fundamental saber que há pessoas como a Mariana que seguem o blogue atentamente. Muito, muito obrigada pelos seus elogios!
Caro Francisco Taveira,
Não imagina como foram importantes as palavras que aqui deixou! É muito bom saber que esteve aí, do outro lado do ecrã, a acompanhar esta aventura e agradeço-lhe imenso não só os elogios, mas também o alento que me dá. O que mais quero é continuar a escrever e a viajar. O livro da volta ao mundo é um projecto que trago na cabeça e no coração há longos meses, mas que tenho tido dificuldade a pôr em marcha... Só recentemente comecei a dar os primeiros passos nesse sentido. Vamos ver do que serei capaz.
Até sempre,
Sandra
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