Se há coisa que me custa é esquecer aquele
primeiro momento em que conheço alguém que passa depois a ser um bom amigo. Trocaria
de boa vontade a recordação clara do momento em que conheci um ser abominável pela
do instante em que acolhi na minha vida uma alma boa. Por que permito eu que a memória
me pregue estas partidas?
O meu caminho cruzou o da Marie em S. Tomé e
Príncipe, há mais de um ano. Estávamos ambas alojadas na casa da carismática D.
Lurdes, que aluga quartos no bairro Água Arroz. Eu viajava com a Nilza havia
cinco meses; a Marie tinha deixado Paris com a Ruth para umas férias de três
semanas. Nós estávamos a fazer uma volta ao mundo, que passava por visitar
países de língua oficial portuguesa; elas quiseram conhecer o lugar de onde vinha
o cacau que estava na origem do melhor chocolate que alguma vez tinham comido.
Não fosse essa prova e talvez nunca tivessem ouvido falar do pequeno
arquipélago na costa ocidental africana, que é atravessado pela linha do
Equador. Não fosse esse pedaço de chocolate e talvez nunca nos tivéssemos
tornado amigas.
Recordo o nosso primeiro jantar juntas, num
paupérrimo restaurante montado na berma da estrada que passava em frente à casa
da D. Lurdes, nada mais que um espaço
delimitado por paus cobertos com panos velhos, onde comemos peixe frito com
arroz e matabala. Recordo também o primeiro passeio que fizemos as quatro, já
na companhia do grande Tiago (um escuteiro português em missão no arquipélago),
para visitar o Jardim Botânico, a Roça Monte Café e a Cascata S. João. Tenho memórias
vívidas de todas as experiências que partilhámos na semana seguinte e das
lágrimas à despedida. Só não me recordo do nosso primeiro “Olá!”.
No dia em que voltei a colocar a mochila às
costas para voar de S. Tomé e Príncipe para a Cidade da Praia, nenhuma de nós
poderia imaginar que dali a um ano estaríamos de novo juntas, precisamente em
Cabo Verde. Parecia-nos mais plausível que nos encontrássemos em Paris ou no
Porto. Mas quando a Marie e a Ruth souberam que eu ia trabalhar para o Mindelo,
começaram a acarinhar a ideia de me visitar. E foi isso mesmo que aconteceu,
dois meses após a minha mudança. Elas chegaram a S. Vicente na noite do Kavala
Fresk Festival (havia milhares de pessoas na rua) e uns dias mais tarde, fui encontrá-las
na pacatez de Santo Antão. O catamarã que faz a ligação entre as duas ilhas
demora apenas 30 minutos a atravessar o canal de S. Vicente. Percorri essa
distância mergulhada nos meus pensamentos sobre as voltas que a vida dá, e a ironia
que é estas três cidadãs do Velho Continente nunca se terem visto senão em ilhas
africanas.
Tínhamos encontro marcado na Vila das Pombas,
um lugarejo na parte oriental da ilha, entalado entre o mar e a montanha.
Cheguei ao início da noite. Morrinhava e nuvens baixas prendiam-se, imóveis, ao
promontório negro onde uma enorme estátua de Santo António resplandecia iluminada
por vários holofotes. Jantámos numa esplanada dando-lhe costas, mas volta e
meia olhava para trás apenas pelo prazer de vê-lo, o Santo António, para lá de
uma fileira de coqueiros esguios, como que a pairar sobre a vila e a olhar por
todos nós com a santidade que lhe é devida. Quando nos calávamos ou pousávamos
os talheres, só se ouvia o estrondo das vagas a rebentar perto do limite da esplanada.
Uns metros ao lado ficava a pensão onde nos alojámos, também ela paredes meias
com o oceano. Escancarei a janela do quarto. A passagem do tempo desacelerou, os
minutos agigantaram-se, sintonizei os meus sentidos com os elementos da natureza,
descerrei os punhos, relaxei os maxilares e os meu pulmões cederam, por fim, à
vontade de respirar fundo. Adormeci ao som do mar e do rolar incessante das
pedras entregues à vontade das ondas. Aconteceu o que eu sempre soube que aconteceria:
em Santo Antão comecei um processo de cura. Voltava à estaca zero.
Foi a minha segunda vez na segunda maior ilha
cabo-verdiana — mais ou menos 40 km de comprimento, 20 km de largura e 50 mil
habitantes. E neste regresso tão desejado a minha ideia fixa era conhecer o Tarrafal
de Monte Trigo, uma pequeníssima aldeia situada a sudoeste. Com pouco mais de
mil almas, na sua maioria pescadores e agricultores, o Tarrafal fica no sopé de
uma grande cadeia montanhosa, por muito tempo considerada intransponível. Ainda
hoje não existe uma estrada que ligue o lugar à principal cidade da ilha, Porto
Novo, e só no início deste ano é que os habitantes puderam contar com
fornecimento de energia eléctrica vinte e quatro horas por dia. Diziam-me que
estar no Tarrafal de Monte Trigo era como estar no fim do mundo. E era dessa
sensação de fim do mundo que eu mais precisava. Persuadi a Marie e a Ruth a
irem comigo.
Partimos do Porto Novo numa manhã de céu
limpo e sol inclemente. Uma vez que grande parte do trajecto se faz por uma
picada que sobe quase até aos dois mil metros de altitude e volta a descer até
à costa, só um veículo todo o terreno pode transportar mercadorias e
passageiros. Por esses transportes não existirem em grande quantidade, naquele
dia tivemos que nos render ao que havia disponível: a caixa aberta de uma
pickup que partilhámos com outros dois passageiros, uma dezena de malas e
mochilas, peixe, vinho, cerveja, leite, água e muitas outras mercadorias que
iriam abastecer os pequenos negócios e lares do Tarrafal de Monte Trigo. Sentadas
em bancos de madeira sem qualquer tipo de protecção, encarámos quinze minutos
de estrada alcatroada com a mesma alegria prevaricadora com que os miúdos
soltam os cintos de segurança dos bancos de trás dos automóveis e espetam as
cabeças pelas janelas abertas para que o vento lhes lamba o rosto e os cabelos.
Depois, veio o breve troço forrado a paralelos que trouxe uma trepidação
desconfortável. E por fim, sessenta minutos de caminho a 20km hora por uma
picada medonha de pedra e terra. Sofri. Não há outra forma de dizê-lo.
De início, torrei ao sol. Depois, nos pontos
mais altos, tive frio. Comi pó, o mesmo pó vermelho que me cobriu da cabeça aos
pés e que a muito custo saiu da roupa quando a lavei à mão. Os altos e baixos
da picada colaram-me várias vezes os rins às omoplatas, puseram-me o estômago
na boca e quase levaram os ossos da bacia a perfurar-me as nádegas a cada solavanco
contra o assento. Magoei os dedos por causa da força com que me agarrei às
cordas que impediam que as bagagens fossem lançadas borda fora. E, contudo,
seguia de coração ao alto porque a beleza estonteante que os meus olhos
abarcaram naquela manhã anestesiou qualquer tormento físico.
Primeiro, a subida até ao ponto mais alto da
ilha, o Topo de Coroa, o vulcão extinto. A ocidente, recortava-se no horizonte,
em tons violáceos, o perfil da ilha de S. Vicente que, contornada por uma bruma
marítima, parecia levitar e deslocar-se sobre o oceano. A visão era feérica.
Depois, o atravessar das nuvens que nunca desistem de cobrir os cumes de Santo
Antão. São alguns minutos de nevoeiro denso e picada que mal se avista. Em
seguida, o desembocar num pequeno planalto à mercê da fúria do sol que ganha
ainda mais força graças à altitude. Reina a absoluta secura e só os pardais nos
recordam que ali é possível viver. É então que a carrinha se inclina e começa a
descida. Atravessa-se nova camada de nuvens, tudo se desfoca. Mas quando o
nevoeiro se dissipa, fundem-se à nossa frente o azul do céu e do mar, e
envolve-nos à esquerda e à direita o negrume das montanhas que já foram vulcão
e lava. Foi aí que me convenci que esta massa gigantesca emergiu do centro da
terra e fez-se ilha com o único propósito de me ensinar o que é a beleza. Por
fim, já junto da costa, com a beira do mar dois ou três metros mais abaixo, o
caminho descreve uma curva acentuada para a direita e a pickup acelera pelo
areal da Praia Grande adentro. É a maior praia de Santo Antão. Vemos à esquerda
o oceano e a sua espuma branca; sob nós a areia negra, qual carvão; à direita a
vertente de uma montanha que sobe recta, num esforço para se unir ao céu; e à
nossa frente, na embocadura de uma alameda de árvores verdíssimas, o cemitério
de muros brancos e os seus mortos alinhados. São o melhor comité de boas
vindas. “Aproveitem”, parecem dizer, “a ilha é eterna; vocês não.” É épica a chegada
ao Tarrafal de Monte Trigo!
Seguiram-se quatro dias de emersão num universo
paralelo, uma viagem no tempo, o acesso a um mundo em vias de extinção. Tudo o
que há para fazer naquele lugar sem luxos nem artifícios prende-se com a
natureza — ir à praia, passear de barco, caminhar nas montanhas, pescar, assistir
ao espectáculo grátis que é o pôr do sol, testemunhar o desovar das tartarugas —
ou com as nossas necessidades mais básicas, como dormir e comer. A nós deu-nos
também para passar longas horas no terraço da pensão do Jaime e da Maria de
onde só se via o mar até perder de vista. A determinada altura, a Marie
recordou-nos que lá à frente ficava a América. E nós ali — muitas vezes em
absoluto silêncio, outras proferindo longas confidências e considerações
filosóficas sobre o que esperamos da vida — na ilha que um dia serviu de
referência para dividir o mundo, através de uma linha imaginária, entre
portugueses e espanhóis.
De entre tudo aquilo que nos distingue umas
das outras, são tantos os pontos em comum, que esta nossa amizade parece não
ser fruto do acaso. E, por entre as nossas semelhanças e interesses partilhados,
estão a escrita e os livros. A Ruth andava mais de caneta em punho. A Marie,
psicóloga de profissão, tinha optado por colocar um livro na sua bagagem. Fotografei-a
no areal da Praia Grande a ler “Vivre Avec Soi”, do psicólogo francês Jacques
Salomé.
“Leio
este livro porque o título me despertou a atenção. Comprei-o por causa do
título, que é muito simples e também por causa do autor de quem já me tinham
falado. Ele é, ao mesmo tempo, psicólogo e adepto da meditação. Havia já algum
tempo que o tinha na minha biblioteca, comprei-o há cerca de um ano e então
decidi trazê-lo para as férias. As férias são o momento em que tento
reconectar-me comigo mesma e como este livro, à partida, fala de como viver
consigo mesmo, pareceu-me perfeito para as férias. É o primeiro livro que leio
deste autor”.
Leitora intermitente, Marie explica que
quando lê não opta por romances: prefere livros sobre a sua profissão ou sobre
o ser humano. E, para além de ler por fases, fá-lo num contexto muito preciso,
naquele que diz ser “a pequena janela de liberdade diária”, isto é, os trinta e
cinco minutos que demora a viagem de comboio entre a sua casa e o trabalho, de
manhã e ao fim do dia.
“Para
mim ler é um pouco como um diálogo, é conectar o pensamento de outrem com o
meu, aumentando-o dessa forma, é abrir janelas que não sabia sequer que
existiam. E é, também, não tanto ver outras coisas, mas ver certas de coisas de
outra forma. Ler é isto, é aprender a mudar a forma como vemos, como pensamos.
E, como diz Jacques Salomé neste livro, ler é colocarmo-nos questões sobre as
quais jamais tínhamos pensado antes”.