O Passeo de la Castellana estendia-se à nossa frente. Era um oásis de sombras e convidava a seguir por ali, para uma trégua do sol e do forte calor que já se sentia em Madrid por altura do S. João. Bancos à direita e à esquerda, entre as árvores, ofereciam descanso e eram, muito naturalmente, um lugar perfeito para ler. Quando vi a Dora com um livro nas mãos e me decidi a falar com ela, não tinha como saber que aquele ia ser um dos momentos em que confirmo que a vida, como dizia Agostinho da Silva, está sempre um degrau à nossa frente. A vida sabe sempre mais. A nós compete-nos saber ouvi-la e segui-la. Naquele dia ela mostrou-me que apesar de todas as mágoas que já nos possam ter infligido e apesar de todas as amarguras que já possamos ter causado, há que manter a disponibilidade para aceitar quem chega às nossas vidas, porque quem chega traz sempre um ensinamento.
A Dora é boliviana e vive em Espanha há alguns anos. Chegou à Europa em busca de trabalho e a sua porta de entrada no Velho Continente foi Lisboa. Aterrou na Portela acompanhada de um amigo que pertencia ao Partido Comunista e que vinha participar na Festa do Avante. A Dora acabou por acompanhá-lo e recorda com carinho esses três dias que passou em Portugal. Diz ter ficado fascinada com os portugueses, que não tinha imaginado tão simpáticos, assim como com o mar, que nunca tinha visto antes. Enfrentar a vastidão do oceano foi tão avassalador como quando nasceu o seu primeiro filho, uma emoção que ela achava ser irrepetível. O livro que lia quando falámos tinha como título "Las Armas Secretas de la CIA" e foi escrito por Gordon Thomas, um perito mundial sobre serviços secretos. De acordo com a Dora, que sempre procurou entender por que razão os norte-americamos se imiscuíram profundamente na vida dos países e dos povos latino-americanos, este livro tem o mérito de ter como autor um verdadeiro anti-imperialista que revela dados e factos muito concretos e indica sem pudores os nomes dos responsáveis por atos bárbaros cometidos em prol da segurança dos EUA. Mas esta não era a única "história" desta obra. Havia uma outra, uma história paralela. É que o livro tinha-lhe sido emprestado por um outro grande amigo argentino, falecido recentemente, um homem muito culto — "uma biblioteca ambulante", afirmou —, oriundo de famílias ricas, mas que optou por uma vida simples e de militância no PC. Um amigo que acreditava tanto no trabalho de Che Guevara na Bolívia, que se aventurou floresta adentro para ir conhecê-lo, mas que falhou o encontro por pouco: quando chegou ao local, Che tinha acabado de ser morto.
Quando fui ter com a minha mãe, que esperava pacientemente por mim sentada num banco lá mais à frente, vi que falava com uma mulher que cumprimentei com um sonoro "Olá!". Esta mulher, que revelou ser uma antropóloga bahiana a viver na Irlanda, procurava o melhor caminho para o Museo Nacional de Antropolgia. Estudei o mapa e disse-lhe que ia na boa direção. São Salvador da Bahia, essa cidade linda que eu e os meus pais conhecemos, foi o pretexto para conversarmos um pouco mais e rirmo-nos de uma série de outras coincidências, como por exemplo o facto de se chamar Elisabete como a minha mãe e estar de viagem marcada para o Porto dali a dois dias. Vinha na expectativa de recolher informação sobre os seus trisavós, ela oriunda de Vila Nova de Gaia e ele de uma freguesia de Aveiro. Dispus-me, sem reservas, a revê-la quando estivesse em Portugal.
E foi aqui, no coração da Invicta, num café Guarany cheio de turistas absortos pelos cantares da fadista que atuava, que me sentei numa mesa de dois lugares para um tête-à-tête com uma bahiana (quase uma estranha) à procura das suas raízes portuguesas. Frente a dois copos cheios de tinto alentejano identificámos interesses comuns e ouvi-a recitar um poema completo de Pessoa com aquele sotaque doce que vem do sul. Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal... E como se só nós ali estivéssemos, chorei. Há momentos em que a vida é tão bela e provoca uma dor tão boa, que só as lágrimas nos permitem digerir o momento, entender tudo. E agradecer por termos ficado mais ricos.
Ficou combinado que um dia mergulharíamos juntas no mar de Salvador.
***
The Passeo de la castellana stretched
ahead of us. It was an oasis of shadows and invited us to go that way, to
escape from the sun and from the strong heath felt in Madrid around the time of
St. John’s Fest. Benches left and right, among the trees, provided rest and
were, naturally, a perfect place to read. When I saw Dora with a book in her
hands and decided I should talk to her, I had no way of knowing that this would
be one of the moments in which I confirm that life, as Agostinho da Silva said,
is always one step ahead of us. Life always knows better. We have the
incumbency to know how to hear her and follow her. In that day she showed me
that in spite of all the hurt that may have been inflicted to us and
in spite of all the bitterness that we may have caused, we have to keep an open
heart to those who come to our lives once they always bring a teaching to give.
***
Dora is Bolivian and
lives in Spain for a few years. She arrived in Europe looking for work and her
doorway in to the old continent was Lisbon. She landed in Portela airport
accompanied by a friend that belonged to the Communist Party and came to take
part of the Avante rally. Dora ended up coming with him and she remembers
fondly those three days she spent in Portugal. She says she was fascinated with
the Portuguese people, that she had never imagined so nice, as well as the sea,
she had never seen before. To face the hugeness of the ocean was as
overwhelming as the birth of her first son, an emotion she thought she wouldn’t feel again. The book she was reading when we spoke was
"Secrets and Lies: A History of CIA Mind Control and Germ Warfare", written by Gordon Thomas, a
worldwide expert on secret services. According to Dora, who always seek to
understand why north-Americans deeply interfered in the life of Latin- American
countries and people, this book has the merit that his author is a true
anti-imperialist that reveals very concrete data and facts and informs without reservations
the names of the responsible for the barbaric acts committed on behalf of the
USA security. But this wasn't the only story of this book. There was another, a
parallel story. The thing is that the book had been lent to her by another
great Argentinian friend, recently deceased, a very cultivated man - " a
walking library", she said - born in a rich family, who chose to live a
simple and militant life in PC. A friend that believed so much in
Che Guevara work in Bolivia, that he ventured trough the forest to meet
him, but he failed the encounter because he was a slightly late: when he
arrived Che had just been killed.
When I went to find my mother, who was
patiently waiting for me sitting in a bench up ahead, I saw she was talking to
a woman to whom I said a sonant "Hi!" This woman, who revealed to be
a anthropologist from Bahia (Brazil) living in Ireland, was looking for the
best way to the National Museum of Anthropology.
I looked at her map and said she was going in the right direction. Salvador da Bahia,
that beautiful city that my parents and I know, was the excuse to talk a bit
more and laugh about a series of other coincidences, for instant the fact that
her name is also Elizabeth like my mother and that she was travelling to Porto
in two days. She was expecting to gather information about her great, great
grandparents: her great, great grandmother was born in Vila Nova de Gaia and her
great, great grandfather was born in a parish of Aveiro. I immediately said I
would be available to see her again when she would arrive to Portugal.
And it was here, at the heart of
Invicta, at the Guarany coffee shop filled with tourists
focused on the songs from the performing fado singer, that I
sat down at a two place table for a tête-à-tête with a woman from Bahia (almost
a stranger) looking for her Portuguese roots. In front of two full glasses of
red wine from Alentejo we identified common interests and I heard her recite
a complete poem from Pessoa with that sweet accent from the south. Ó mar
salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal... And just like if it was
just the two of us there, I cried. There are moments that life is so beautiful
and causes such a sweet pain, that only tears allow us to process it, to
understand everything. And be thankful for
being richer.
We agreed that someday we would dive in
together in the sea of Salvador da Bahia.
Translated by Marisa Silva
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