domingo, 4 de janeiro de 2015

Vietname — Lost in translation



Ao fim de três anos a escrever para o Acordo Fotográfico impuseram-se alguns hábitos na hora de produzir um post. Normalmente, as primeiras frases nascem quando não estou na frente do computador, mas sim ocupada com tarefas corriqueiras como lavar a loiça, tomar banho ou regar as plantas. Esse é o ponto de partida. Mas depois, claro, sento-me à mesa da sala, ligo o portátil, pego no bloco e revejo as notas que tirei quando conversei com o leitor, numa tentativa de compor o resto da história que já começou a ser contada na minha cabeça. Foi tudo isso que fiz hoje de novo, pela 348ª vez. 

"08.06.2014 Hanoi / Nome do leitor: Bui Thanh Liêm (escrito pelo seu próprio punho) / Livro sobre Geografia da China e do Vietname" — a isto se reduzem as notas para o post de hoje, porque a barreira linguística não deu para mais conversa com Bui. Mas esta coisa pouca não me pareceu entrave. Podia explicar, como tenho vindo a fazer nos últimos meses, onde estava e o que fazia quando o conheci. Podia descrever os últimos momentos vividos em Hanoi, antes de voar para Macau, contar a minha intenção de passá-los na margem do lago e detalhar o percurso que fiz pela enésima vez pela rua Hàng Gai, no Old Quarter, a grande artéria que intermediava entre o meu hotel e o coração líquido da capital. Podia recordar essas horas longas, leves e livres que esbanjei a entrar e a sair de todas as lojinhas onde experimentei vestidos de seda que não comprei, mandei confeccionar por medida roupa em algodão e linho, usufruí dos serviços de um sapateiro ambulante e fotografei sofregamente pormenores da vida alheia, que aos meus olhos era repleta de exotismo. E então, fui procurar por entre as 23 mil fotografias da viagem as imagens do leitor do dia 08.06.2014. 

Sim, lembro-me bem do momento em que o conheci. Estranhei aquele estaminé de venda de acessórios para telemóveis e tablets, montado à entrada daquilo parecia um longo corredor escuro de acesso a habitações. Não o tinha visto ali antes, mas a verdade é que os vietnamitas são pródigos em negócios pop up... Demoro-me a apreciar as fotos e delicio-me com os detalhes que transpiram Vietname: os banquinhos azuis de plástico, que existem aos milhares por todo o lado; os chinelos bege também de plástico, que parecem ser o calçado oficial dos vietnamitas; a unha comprida do polegar que ajuda a virar a página do livro, sinal de quem não trabalha a terra. Mas há algo que não bate certo: o que faz uma caveira sinistra de caninos gigantescos na capa de um livro sobre a geografia da China e do Vietname? E estaria Bui assim tão interessado no tema para já estar a ler o terceiro volume? Só mesmo esta ferramenta diabólica que é a internet me poderia ajudar a desvendar o enigma em poucos minutos. 

Não foi preciso mais do que uma mensagem enviada pelo Facebook ao português amigo que vive e trabalha em Saigão. A resposta chegou, veloz: o livro, com o título "Loi Nguyen Lo Ban" (algo como "A Maldição de Lo Ban"), pertence a uma série de inspiração fantástica que relata a história de um homem que cria armas extraordinárias. Este génio despejou todo o seu conhecimento num livro misterioso. Aquele que um dia conseguir descodificar o seu conteúdo verá a sua vida devastada por uma terrível praga. 

Esqueçam, portanto, a geografia. Obviamente, algures durante a curta conversa com Bui, "perdemo-nos na tradução".

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