A viagem de Brasília para o Rio de
Janeiro poderia ter sido feita de avião. Mas decidi ir de
autocarro. Queria viver essa experiência de atravessar parte do Brasil num bus
Marcopolo. E assim, transformei aquilo que seria uma viagem insípida entre dois
aeroportos numa odisseia rica em pormenores que demorou 24 horas desde que saí
da casa do meu anfitrião na capital até chegar à casa da minha anfitriã
carioca. Fizemos o trajecto sem qualquer problema. Vimos paisagens magníficas
enquanto foi dia, parámos no meio do nada para comer, espreitei um céu
estrelado límpido (impossível de apreciar nas grandes cidades iluminadas)
sempre que acordava do meu sono intermitente. Por volta das sete da manhã,
quando já estávamos a entrar no Rio de Janeiro, o motorista decidiu que todos
os passageiros deviam despertar ao som
da Rádio Tupi, uma emissora popular, de pendor católico e noticiário
sensacionalista que transformou a nossa chegada à cidade maravilhosa numa
descida aos infernos: o som altíssimo, os locutores aos berros, o relato dos
engarrafamentos e dos acidentes rodoviários, o bairro que amanheceu com um
corpo carbonizado numa esquina, os dois transeuntes que foram executados com
tiros na cabeça por indivíduos que passaram de mota, os ataques violentos às
Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas (perdão, nas "comunidades
pacificadas", que isto de dizer "favela" não é politicamente
correto…) foram a nossa comitiva de boas vindas. E alguns minutos depois chega
ainda a notícia, por intermédio dum passageiro, que os autocarros que saíram de
Brasília ao início da noite para fazer o mesmo trajecto tinham sido abordados
por grupos de bandidos e assaltados. Perante este cenário quase apocalíptico,
de nada me serviu que os elementos do programa da manhã da Rádio Tupi tivessem
rezado em coro um sonoro Pai Nosso. Achei que nesta cidade não haveria nunca
protecção divina suficiente e uma das decisões que tomei de imediato foi que a
vistosa câmara com que fotografo habitualmente ficaria trancada em casa não
fosse o diabo tecê-las. Por isso tive por companheira a pequena Sony, dona de
algumas imitações, o que se notará nos próximos posts. Curiosamente, o primeiro
dia que passei no Rio, um sábado, teve contornos bucólicos que permitiram
esquecer o cenário de guerra civil descrito por certos órgãos de comunicação
social. Estive toda a manhã no belíssimo Jardim Botânico, a tarde no Instituto
Moreira Sales e ao fim do dia na praia do Leblon. Foi nesse trajecto para a
praia que passei junto à Livraria Argumento, na Rua Dias Ferreira, que tem
em frente às vitrinas dois bancos que convidam os clientes a sentar-se e a
começar a ler de imediato os livros que acabaram de comprar. Foi o que fez a
Diana, uma argentina que vive na cidade há trinta anos. "Adoro o Rio de Janeiro",
disse-me no seu português com sotaque "porteño". Tinha ido à livraria
para trocar um livro que lhe ofereceram e que já tinha lido: "Madrugada
Suja", de Miguel Sousa Tavares. Trouxe, como alternativa, o romance
"Mr. Gwyn" de Alessandro Baricco, um autor de quem gosta muito e de
quem não lia nada há muito tempo. Os seus romances "Seda" e
"Novecentos" foram-me recomendados com grandes entusiasmo. "E
que significa, para si, ler?", perguntei. "Adoro ler. A leitura é uma
grande companhia. E é uma forma de aprofundarmos tudo: nós, o mundo, a
vida", respondeu.
Mais fotos desta leitora aqui e fotos da Livraria Argumento aqui.
***
The trip from Brasília to Rio de Janeiro
could have been done by plane. But I decided to take the bus. I wanted to live
that experience of going across part of Brazil on a Marcopolo bus. And so, I
turned what would be a uninspired travel between two airports into an odyssey
rich in details that took 24 hours, since the time I left my host house at the
capital until I arrive to my host house in Rio de Janeiro. There were no
incidents during the trip. We saw magnificent landscape during the day, stopped
in the middle of nowhere to eat, looked at the clean starring sky (impossible
to enjoy in the big lighted up cities) every time I woke up from my intermittent
sleep. Around seven in the morning, when we were entering Rio de Janeiro, the
driver decided to wake all the passengers with the sound of Radio Tupi, a
popular radio station, mainly catholic and with sensationalist news that
turned our arrival at the wonderful city on a path to hell: the sound really
loud, reporters screaming, accounts of traffic and of road accidents, of a neighborhood
that woke up with a burned body at the corner of a street, the two passersby
executed with shots in their heads by individuals on a motorcycle, the violent
attacks to the Pacifier Police Force at the slums (sorry, at the "pacified
communities", because saying "slum" isn't politically
correct...) were our welcoming committee. And a few minutes after yet
comes the news, given by a passenger, that the bus that left Brasília
in the beginning of the night to do the same path as ours had been approached
by a group of bandits and had been stolen. Faced with this almost apocalyptic
scenario, the fact that the elements of the morning show from Radio Tupi prayed
in choir and out loud an Our Father didin’t do much for me. I thought that in
this city there would never be enough heavenly protection and one of the
decisions I immediately took was to lock in the house the flashy camera I
usually photograph with in case the devil would remember to play me a trick. So
my companion was the small Sony, owner of some limitations obvious on the
pictures of the next posts... Curiously, the first day I spent in Rio, a Saturday,
had bucolic edges that allowed forgetting the civil war scenario described by
certain media. I spent all morning at the beautiful Botanic Garden, the
afternoon at Moreira Sales Institute and at the end of the day at Leblon beach.
It was on that way to the beach that I passed by Argumento bookstore, on
Dias Ferreira Street, which has in front of the windows two benches that invite
the customers to sit down and immediately start reading the newly bought books.
That was what Diana did, an Argentine living in Rio de Janeiro for thirty
years. "I love Rio de Janeiro" she said in her Portuguese with a
"porteño" accent. She had gone to the bookstore to exchange a book
offered to her and that she had read before: "Madrugada Suja" by
Miguel Sousa Tavares. She brought, as an alternative, the novel "Mr.
Gwyn" by Alessandro Baricco, an author she cares about and she hadn't read
in a long time. His romances "Silk" and "Novocente" were
recommended to me with great enthusiasm. "And to you what does reading
mean?" I asked. “I love to read. Reading is a great companion. And it is a
way to deepen everything: us, the world, life", she answered.
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